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01 outubro 2011

MANHÃ, por Miguel Paulista


MANHÃ

Acordei de manhãzinha.
Com o sussurro da noite nos olhos,
despertei os pés no capim fresco.


Olhei para o orvalho da flor,
vivi a frescura e a cor


Era batuque e poema...


Espreguicei o olhar mais além.
A neblina de sono, acariciou
o sol de fogo doce, que me beijou.


Ouvi "catuite" cantar
como só ele sabe bem...


Sentei na pedra grande,
acarinhei a água do ribeiro,
afaguei o capinzinho frágil.


Abracei a mangueira em flor
e enxotei os olhos, longe, longe...


Amarelos, laranjas, vermelhos, azuis...
Tudo encharcado em cor!


Respirei ternura.


Senti no cheiro da terra,
amor e doçura...


Anestesiei os olhos no céu...


É muito bom
acordar na minha terra!
Miguel Paulista
Publicado no Recanto das Letras
Código do texto: T2619269

17 junho 2011

NIKO, por Miguel Paulista.

Niko, cão que me acompanhou na adolescência, era neto do Rajá e da Bonita.
O Rajá, tinha a faculdade de convencer o meu pai (que se levantava às 4 horas da madrugada para ir trabalhar), a deixá-lo entrar para o meu quarto onde se deitava no tapete ao lado da minha cama. Por volta das 8 horas da manhã, raspava com a pata no meu braço até eu acordar. Cumprimentava-me, assim, com a pata, e lá ia à sua "vidinha" depois da minha festa matinal.
Era um cão tipo Lassie, em ponto mais pequeno, branco e muito elegante.
A Bonita, também branca e com muito pelo, padecia de ataques epilépticos, e tinha ódio de morte a bicicletas em movimento.
Corria atrás de quem passasse numa e, na altura em que ia morder, a raiva era tanta, que tinha um ataque. Quando recuperava, se a bicicleta ainda estivesse à vista, desatava em grande correria atrás dela. Na altura da dentada, outro ataque. Isto repetia-se até ficar sem forças, ou, se após a recuperação, a bicicleta tivesse desaparecido.
A Bonita morreu cedo, vitima de um desses ataques. Tinha eu cinco ou seis anos.

Da relação amorosa entre o Rajá e a bonita, nasceu a Salsicha, cadela meiga, de pelo curto e branco, esbelta, que me deixou boas recordações de companheirismo.
O meu pai trabalhava numa fazenda, e, por eu ter atingido a idade escolar, fui obrigado a ir viver para casa dos meus tios, na cidade (nessa altura ainda Vila), local onde podia frequentar a escola.
Contava a minha mãe, que a Salsicha passou a ser uma cadela triste, isolada. Quando passava por algum brinquedo meu ou roupa, ela cheirava inúmeras vezes e acabava por se deitar em cima ou ao lado da peça. Era gratificante o nosso reencontro nas férias escolares.
O que valia à Salsicha, na minha ausência, era o companheirismo do Turco. Cão de outra estirpe, baixinho, comprido, de orelhas caídas, branco e com manchas acastanhadas.
O Turco era um cão folgazão, muito namoradeiro e com imensas saídas nocturnas. De vez em quando chegava a casa de manhã, com o casaco todo rasgado, das brigas em que se metia. Mimávamo-lo e tratávamos-lhe das feridas. Ele agradecia com um olhar terno, tão meigo que dava vontade de o abraçar.
Começou a guerra em Angola, e foram distribuídas algumas armas aos trabalhadores da fazenda.
O Sr. Ermelindo, homem de Lisboa e mecânico credenciado, por ter andado na tropa, ficou encarregado de dar instrução aos outros empregados sobre o manuseamento das armas, de forma a poderem ser utilizadas em caso de necessidade. Logicamente, como homem sabedor, ficou ele, na posse da única metralhadora existente. Uma FBP (arma falsa, com segurança deficiente).
Numa instrução, estando os empregados, as armas e os cães, o instrutor resolveu fazer a demonstração da FBP.
Pegou na arma, deu as devidas explicações, e demonstrou como se metia o carregador que estava cheio de balas, porque era demonstração a sério. Com a pancada da introdução do carregador, a FBP resolveu despejar as balas todas.
O azarado foi o Turco, que ficou com a farda furada, e, desta vez, só por estar atento. Por sorte, as duas balas que o atravessaram não apanharam nenhum órgão vital. Tratámo-lo, demos-lhe muitos mimos, e ficou como novo pronto para as noitadas.
Morreu muito mais tarde, de doença.
O meu pai teve um problema grave de saúde, e fomos forçados a mudar-nos para o Cubal, onde eu já estudava.
A Salsicha acompanhou-nos e adaptou-se muito bem à cidade.
Andava sempre comigo e com o meu grupo de amigos.
Lembro-me do dia, em que fomos vadiar até ao rio Cubal, e, quando lá chegamos, ela em euforia, começou a correr e a saltar de pedra em pedra à beira do rio, e, não se apercebendo que havia água por baixo, pulou para cima dos limos e nenúfares. Claro, tivemos que a tirar rapidamente do banho, com receio de algum jacaré ou que a corrente da água a levasse.
A Salsicha teve uma ninhada, e, depois de uma noite de zaragata com outros cães que invadiram o quintal, adoeceu e não conseguiu sobreviver.

Da ninhada, embora alimentássemos todos com biberão, só resistiu um filhote.
Peludo, branco, com manchas acastanhadas... uma ternura.
Muito contra minha vontade, a minha mãe deu o cão ao Engenheiro Farinha, nosso vizinho, que era professor no Instituto, liceu onde estudava na altura.
Quando foi a escolha do nome do cão, eu estava presente.
O engenheiro Farinha fez uma enorme dissertação sobre um foguetão Russo que tinha levado uma cadela para o espaço.
Devia atribuir-se ao cão, um nome ligado à situação, em homenagem aquele grande passo da ciência.
Como se tratava de um macho, foi decidido que ficasse Sputnik, o nome do foguetão que levou a Laika para o espaço, em 1957. Nome que achei esquisito, e demasiado grande para um cão tão pequeno. Mas, como era em honra da ciência, estava justificada a decisão, pelo que fiquei conformado e até com uma pontinha de orgulho, devo confessar.
Em 2002 veio a saber-se que a Laika tinha morrido de sobreaquecimento, poucas horas depois do lançamento. Melhor dizendo, a Laika morreu assada.
Ainda hoje me questiono sobre este passo da ciência e da dissertação do Engenheiro Farinha.
Eu e o cão tínhamos uma ligação fortíssima. Sempre que podia, ia para casa do engenheiro Farinha para ficar ao pé do Sputnik e ele fugia para minha casa assim que pudesse.
Para grande satisfação minha, o engenheiro decidiu devolver-mo.
Com a devolução do cão, e, dado que "Sputnik" era um pouco complicado de pronunciar, decidi atribuir-lhe um diminutivo que se ajustou como uma luva... NIKO!
O Niko, foi então promovido a cão da "malta".
Ia comigo para o liceu, para os ensaios quando eu comecei a tocar bateria, e até, para os bailes quando eram ao ar livre (ele aparecia e deitava-se ao pé da bateria).
Era um cão libertino e de decisões próprias. Procurava-me pela cidade se não me visse em casa. Percorria todos os sítios por onde costumava andar comigo, até me encontrar.
Houve uma altura, em que eu e o Niko, andávamos muito no Mini Moke do Victor Rodrigues, que tocava comigo num conjunto (hoje banda).
Nas saídas pela cidade à minha procura, se eventualmente o Niko encontrasse o Mini Moke parado, desistia da procura. Saltava lá para dentro e deitava-se no banco, à espera.
Se eu estivesse com o Victor, e fossemos os dois para o Mini Moke, era um encontro empolgante, sensível, carregado de saltos, festas e alegria.
Se não estivesse, o Victor tirava-o e ele saltava outra vez para o jeep, e assim sucessivamente.
Se não fosse ter comigo, o Victor só tinha a opção de levá-lo a minha casa. O jeep parava, ele via onde estava, e saltava por decisão própria.
Era conhecido pela juventude, e não só, como cão Yé-Yé.
Um dia apareceu-lhe um papo ou abcesso no pescoço (que mais tarde, rebentou e passou). O abcesso ficou conhecido pelo "papo yé-yé".
Penso que foi o abcesso mais famoso da cidade.
O Niko morreu quando eu estava na tropa.
Dizia a minha mãe, que de saudade.

Esta, é uma pequena homenagem a uma família canina, que me acompanhou no meu crescimento e equilíbrio emocional.

Miguel Paulista

Publicado no Recanto das Letras
Código do texto: T2631343