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28 outubro 2025

A bagagem invisível do retorno


 

Imagem extraída da internet

Chegar a Lisboa, vindo do caos de Luanda em Outubro de 1975, não foi um regresso, foi uma aventura de sobrevivência que começou muito antes da Ponte Aérea.

Eu nasci no Cubal, uma pequena cidade angolana que se tornou, de um momento para o outro, no epicentro de sonhos desfeitos. Os meus pais, Raúl e Júlia, tiveram de deixar para trás a vida que construíram ali. Carregámos umas poucas malas e a esperança de nos safarmos.

Lembro-me daquele tempo como uma sucessão de despedidas sem adeus. Deixei para trás os amigos da infância, companheiros de aventura que, de repente, foram varridos do meu horizonte. A guerra civil alastrava e, na pressa, não houve tempo para promessas de reencontro. Há amigos que se perderam para sempre naquele êxodo, irmãos de brincadeira que nunca mais encontrei, cujos destinos me assombram até hoje. Eles são a parte invisível da minha bagagem.

A vida na província e, depois, em Luanda, transformou-se num jogo de sobrevivência onde o terror era o som de fundo. Antes da fuga final, vivi as horas intermináveis refugiado em casa, debaixo do receio constante, enquanto lá fora se degladiavam em fortes confrontos militares o MPLA, a FNLA e a UNITA. Ouvíamos ao longe o ribombar, e depois, o silêncio tenso.

Lembro-me da primeira vez que senti o forte cheiro da pólvora dos morteiros e bazucas – uma realidade crua, bem diferente dos filmes. A guerra que se degladiava entre os movimentos de "libertação" não era espetáculo; era a realidade violenta que nos envolvia e nos expunha a efeitos que uma criança nunca deveria conhecer. O medo entrava-nos pelas janelas e obrigava-nos a encolher, dependentes unicamente da proteção e coragem do meu pai Raúl e da minha mãe Júlia.

A viagem até Luanda, onde fomos parar, foi o primeiro pesadelo. De Benguela e do Lobito, embarcámos num frágil barco pesqueiro, o Kalua. Éramos gente a mais para uma embarcação que dançava perigosamente ao sabor das ondas.

Chegámos a Luanda, uma cidade sitiada, e a nossa paragem foi um quartel militar. As filas para o sustento eram intermináveis, a incerteza corroía o espírito.

Finalmente, conseguimos um lugar naquela que ficou conhecida como a grande Ponte Aérea. A fotografia do aeroporto, com o seu caos de pessoas e bagagens, é um espelho desse dia: milhares de desalojados, à espera de um avião que nos levasse para a capital do Império que se desmoronava. Fomos num avião da Swissair, voando sobre um passado que ficava para trás, rumo a um futuro incerto.

A aterragem em Lisboa marcou o fim da fuga, mas o início de uma nova e árdua batalha. Fomos acolhidos por familiares – anjos que nos deram teto e a ajuda necessária para recomeçar.

Olho para trás e percebo o preço dessa transição. Aqueles desassossegos marcaram-me para a vida. Mas as cicatrizes mais profundas ficaram na minha querida mãe, Júlia. A ansiedade da guerra e do retorno deixou nela uma marca que nunca desapareceu, o custo invisível da sobrevivência.

Os meus pais foram lutadores e empreendedores. Com resiliência e a vontade de viver que traziam, refizeram a vida.

Em 2020, quando a vida finalmente parecia mais ou menos equilibrada, o meu querido pai, Raúl, partiu. Partiu sem ter a oportunidade de desfrutar plenamente do tempo que merecia, depois de tanto lutar.

Restam-me as memórias: a força do Kalua, o cheiro da pólvora, o abraço dos meus pais e as faces dos amigos perdidos. São histórias difíceis, por vezes duras de lembrar, mas são a base de quem sou: um filho do Cubal, feito em Portugal. Honro o sacrifício e a resiliência do Raúl e da Júlia. A nossa bagagem mais importante nunca foram as malas; foi a vontade de viver.

Rui (Ruca)

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