Decorreu na passado dia 5 de outubro, em Fornos de Algodres, o 24º Encontro dos Estudantes do Cubal. Os organizadores convidaram o cubalense Jaime Marques de Almeida, que começou a sua carreira profissional no Emissor Regional do Cubal, para proferir a habitual “lição de sapiência”. Por considerar muito pomposa a designação, o orador, cujo texto agora publicamos, preferiu chamar-lhe “uma simples comunicação”.
SEM RAIVA
Há 38 anos, nesta época do ano, muitos de nós começavam a desembarcar em Lisboa. Chegámos exaustos, tantas foram as humilhações passadas e tantos os perigos vencidos. Mas chegámos, chegámos de dentes cerrados – tamanha era a raiva.
Quase quatro décadas depois, aqui estamos, mais uma vez, a confraternizar. A confraternizar, sem raiva, como se alguns de nós não tivessem viajado em porões de barcos e aviões mais adequados ao transporte de gado (e neste aspeto em particular sei bem do que falo).
Foi talvez a maior ponte aérea da história. Mais de 900 voos de diferentes companhias aéreas despejaram em Lisboa quase 200 mil pessoas. Adoentadas, esfomeadas, esfarrapadas, mas pessoas!
Não foi fácil montar a ponte aérea, quer no plano político, quer no plano logístico. Amaciados pelo tempo, que tem esse condão, reagimos hoje com grande complacência às revelações que vão sendo feitas pelas personalidades que protagonizaram os acontecimentos da época, por um lado, e resultantes da abertura dos arquivos, por outro.
António Gonçalves Ribeiro, tenente-coronel na altura, que foi com um administrador da TAP reunir com o Presidente da República, General Costa Gomes, a quem o administrador da TAP disse que não era possível aumentar a capacidade de transporte, ouviu no final: «Pronto, foi feito tudo aquilo que podia ser feito, é impossível fazer mais». Mas alguém acrescentou: «Não há aviões. Eles que comeram a carne que roam os ossos».
Houve aviões. Houve aviões porque houve um homem que não desistiu. A ponte aérea funcionou graças à perseverança de António Gonçalves Ribeiro, a quem todos nós devemos um gesto de gratidão pelo que fez. Se muitos houvesse como ele, Portugal – reconheceu o militar em entrevista ao DN há três anos – não sairia com as calças «muito próximo dos calcanhares», mas talvez pelos joelhos.
Todos sabemos como evoluiu a situação em Angola e as consequências que teve. Não vale a pena abrir feridas já cicatrizadas. Contudo, é irónico saber-se hoje, como revela Alexandra Marques no seu livro Segredos da Descolonização de Angola, que o almirante Rosa Coutinho se tenha referido ao Acordo do Alvor como tendo sido «uma caldeirada à portuguesa”; que Mário Soares tenha visto o encontro da Penina como um «Jogo viciado»; e que para Manuel Monge, militar, a descolonização foi «aquilo que o MFA queria».
No livro Os Retornados Mudaram Portugal, Fernando Dacosta, que foi nosso convidado num dos anteriores encontros, e que tem abordado esta temática de forma séria e profunda, lembra-nos que havia quem defendesse o abandono dos brancos a fim de serem «atirados ao mar» pelos negros. Na redação do semanário O Jornal, um dos responsáveis impediu Fernando Dacosta de escrever sobre os retornados com o argumento de «serem uns colonialistas reacionários que deviam expiar os seus crimes».
Muitos de nós têm ousado relatar em forma de livro a experiência do regresso, ou da fuga (como quiserem chamar-lhe). Ainda bem que o fazem. Folheei há dias o livro Angola, O horizonte perdido, de António Coimbra, onde o autor diz que a cada esquina era apelidado de explorador e entre os insultos mais suaves ouvia estes: «retornados de merda, voltem para junto dos pretos que andaram a roubar» ou ainda «vão-se embora, gatunos, não venham para aqui roubar o pão aos nossos filhos».
Há leituras menos dramáticas do que se passou. Renato Pereira, um amigo meu, ex-companheiro no Rádio Clube do Lobito e atualmente um empresário de sucesso no ramo da hotelaria, em Portimão, foi ouvido pela autora do livro S.O.S ANGOLA, os dias da ponte aérea, Rita Garcia, e recorda sem mágoa as peripécias do regresso. Diz Renato Pereira que «não foi tau mau como estava à espera» e para ele «o governo de então fez um trabalho espantoso para integrar tanta gente tão depressa». Usando como termo de comparação os portugueses que nunca saíram do país, Renato Pereira considerou-se um privilegiado, com o seguinte argumento: «Se eu pedisse um empréstimo, davam-no. Aos de cá não». Conclui o meu ex-colega Renato Pereira: «as pessoas tinham toda a razão em olhar-nos de lado, nós éramos os intrusos que arranjávamos empregos enquanto eles passavam dificuldades para trabalhar».
Deixo aqui estes dois pontos de vista, ambos respeitáveis, com a firme convicção de que no presente já não existem os de cá e os de lá. Hoje estamos todos do mesmo lado, somos todos de cá. Citando de novo Fernando Dacosta, «Se ontem o país viu dissolver o exterior de si (o império), hoje vê dissolver o interior de si – a identidade». Contem de novo connosco, acrescento eu, para o país sair do atoleiro.
Há, no entanto, uma mensagem que não quero deixar passar em claro. Embora aparentemente não venha a propósito, recordo-vos que o jornal brasileiro O Globo retratou-se há dias, admitindo ter errado ao apoiar o golpe militar de 1 de abril de 1964. Os atuais responsáveis do jornal são de opinião que o apoio foi um erro. E 49 anos depois assumiram-no. Por outro lado, no Chile, 40 anos depois, os representantes do sistema judicial vieram a público, há poucos dias também, assumir «a sua responsabilidade histórica» na instauração do regime de Pinochet. Consideraram chegado «o momento de pedir perdão às vítimas, aos seus familiares e à sociedade chilena».
Dito isto, há uma pergunta que deixo no ar: e, por cá, tantos anos passados, de todos os que cozinharam a “caldeirada à portuguesa”, quem nos vai surpreender, no mínimo, com uma palavra que tenha a dignidade, essa sim, de ser exemplar?
Enquanto esperamos – e a espera vai ser longa, acreditem -, reparem como o António Coimbra se refere ao Rio Cubal no livro Angola, O horizonte perdido: «…o rapaz gostava particularmente da Hanha, um lugar aprazível e de grande beleza situado nas margens do rio Cubal, onde extensos bananais e frondosas palmeiras sugeriam o paraíso».
Termino, desejando, com toda a sinceridade, que sejam felizes os que têm o privilégio de usufruir do paraíso onde tantos de nós cresceram e viveram. E que todos nós sejamos capazes de transformar o inferno em que vivemos no paraíso que merecemos.
No próximo ano cá estaremos!
Boa Noite.