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03 setembro 2008

O Rei da Galga *



O pai do Zeca tinha estado em Angola. Voltou em 75, mas nunca se conformou. Fechou-se numa quinta e fingia que vivia em África: andava de botas e chapéu de safari.
Nós éramos amigos do Zeca e não o largávamos com perguntas sobre o pai. Ele convidou-nos para jantar.
Foi inesquecível. O pai do Zeca contou, à mesa, tais histórias que passou a ser o nosso ídolo. É claro que era tudo peta, e nós, depois de sairmos da quinta do Zeca, passámos o resto da noite a recapitular cada pormenor e a rebolarmo-nos a rir. Baptizámos o homem como o Rei da Galga e fizemos o Zeca prometer que nos convidaria mais vezes para jantar.
Ele acedeu. Mesmo percebendo o nosso gozo, ficava orgulhoso do pai, porque tinha a noção de que as galgas eram realmente fenomenais. O Rei da Galga adorava contar as suas galgas, porque isso o fazia sentir-se em África. E nós rejubilávamos, porque as galgas do Rei nos forneciam matéria de risota para a semana inteira.
Havia um homem, grande amigo do Rei da Galga, que vivia isolado no meio da selva (isto é uma história do Rei da Galga). Mas era conhecido pelos jantares sumptuosos que oferecia. Convidava dezenas de pessoas e apresentava uma mesa cheia de iguarias, desde carnes de caça até gelados italianos e vinhos franceses, que ninguém sabia como chegavam ali. E além disso - e aqui o Rei da Galga punha o ar de quem está a contar apenas mais um pormenor - além disso tinha um gorila a servir à mesa. Fardado.
Um gorila? Nós estávamos siderados. Sim, um gorila a deitar o vinho nos copos de cristal.
Queríamos mais. Rei da Galga, conta-nos mais.
Outro amigo, que também costumava proporcionar uns serões magníficos, era um caçador extraordinário. A sua casa estava repleta de cabeças de antílopes nas paredes, dentes de elefante, peles de leopardo, um rinoceronte embalsamado.
E o Rei da Galga contava; "A certa altura, eu sentava-me num puff muito confortável. Estávamos a conversar e dá-me a impressão de que o puff começa a mexer. Dou um salto. Olho para baixo e vejo que o puff era uma jibóia, viva, toda enroscada."
O Rei da Galga não sonhava que nós nos ríamos dele. E ia contando histórias cada vez mais inverosímeis, com um ar cada vez mais displicente. A ideia era mostrar que África era uma terra tão prodigiosa que estes episódios eram irrelevantes para quem vivia lá. Ele já nem ligava. Em África, uma pessoa fica noutra dimensão.
Contou que tinha um pastor alemão, enorme e feroz, que lhe guardava a propriedade. Era um portento de um cão, capaz de enfrentar qualquer animal selvagem. Certa noite, um leão entrou em casa. Estava esfomeado, e vasculhou tudo, à procura de carne. Fiel ao seu dono, o cão esperou o atacante debaixo da cama onde o próprio Rei da Galga dormia. Quando finalmente o leão o encontrou, travou-se um combate brutal e sangrento entre os dois animais, que durou horas e no fim do qual o leão comeu o cão. Pois tudo isto se passou debaixo da cama e o Rei da Galga nem acordou!

* in Público P2 22082008  - Paulo Moura - Jornalista