20 dezembro 2008

Histórias da família cubalense - Por Fernando Marta

O Fernando Marta, presenteia-nos com estas fabulosas histórias da família cubalense, tendo sido inseridas directamente pelo Fernando, no nosso Livro de Visitas e que aqui reproduzimos. Para quem ainda lá não foi, convido a fazer visita e participação clicando aqui

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Pedro Jorge, Mimi e Ruca
Do Dr. Largo, quem não se lembra?Foi meu professor de Física, Química e creio que também de Matemática. Era um crânio e um doce de pessoa.Foi pena sermos tão jovens e inconscientes e não aproveitarmos (falo por mim) todo manancial de informação e conhecimento que aquele homem, apesar da sua gaguez, nos transmitia, ultrapassando esta limitação escrevendo tudo o que dizia, no quadro, com uma incrível rapidez.Uma vez por outra quando a aula estava, o que era raro, mais monótona, pedíamos ao Dr. Largo, alegando uma hipotética indisposição, para sair. De imediato consentia dando-nos autorização para irmos ao hospital. Aproveitávamos então esse tempo, para em poucos minutos, nos deslocarmos de bicicleta, normalmente eu e o Campanhã, ao Colégio (Eça), a fim de vermos as “miúdas” que, naquele momento, à janela da sala de aulas, que algum tempo antes também tinha sido minha, desfrutavam do merecido intervalo, nem sempre coincidente com o da Escola, onde já havia um intervalo qualquer com cerca de 20 minutos, a permitir-nos mais uma passagem pelo colégio.Nem sempre estas viagens corriam pelo melhor, houve uma vez, que ao dar a curva, ali no cruzamento da
Singer, virando para o Tipóia, com as miúdas a assistir de camarote da tal janela, a velocidade era tal, que dei um malhanço, que me levou a ter mesmo que passar pelo hospital e, logicamente, de enfrentar o Sr. Tomé a quem dávamos, para justificar as quedas com a consequente ausência de pele em vária partes do corpo, a eterna desculpa do cão, “aquele malfadado cão que se atravessava sempre e na pior altura na nossa frente”, para suavizar a “coisa” com medo de levar algum tratamento de choque (uma generosa dose de tintura ou outra coisa qualquer que mais parecia o inferno em contacto com a pele ou com a parte donde esta se tinha ausentado), acrescido de um raspanete, que era o que mais se adivinhava naquele homem de aspecto “franzino, pequeno e delicado” e que afinal nos tratava como se fossemos seus filhos (só não nos dava, graças a Deus, uns merecidos cascudos).Nas minha idas ao hospital que não foram muitas, mas não foram tão poucas assim, o senhor Tomé (que Deus tenha em descanso), nosso amigo, fazia questão de, e sempre que lhe era possível, ser ele a tratar-nos (o que na altura não representava lá um grande alívio…), demonstrando dessa forma, o carinho e a amizade que na verdade sentia por nós, e o seu inegável profissionalismo.Lembrei-me agora daquela vez que fui com o Zé Silveira, ao hospital, para este arrancar um dente… Quem nos aparece para cumprir essa delicada operação? O senhor Tomé que amavelmente me permitiu a entrada para assistir à penosa intervenção, a pedido do Silveira, que me tinha mostrado, enquanto nos dirigíamos para o hospital o indesejado dente, abanando-o com a língua.O Silveira lá se sentou na cadeira de dentista existente no hospital, e mal o Sr. Tomé lhe diz para abrir a boca, ele abre-a realmente mas para começar a chorar e logo de seguida entre dentes, pois de imediato os cerrou.Aí, eu como amigo do Silveira e custando-me tanto ver todo aquele sofrimento disse ao senhor Tomé que pacientemente aguardava o acesso ao condenado dente.- Ó senhor Tomé o dente já abana… e muito! Ai é! E agarrando com a mão esquerda a cabeça do pobre do Silveira que agora berrava que nem um condenado, possibilitando assim, com o alicate que segurava na direita, a extracção, num abrir e fechar de olhos, do motivo de tanta angústia.Creio que o Zé ficou um pouco zangado comigo, coisa que depressa passou, mal nos apanhámos fora do hospital e do alcance do senhor Tomé.Mas, estava aqui eu a falar do Dr. Largo e desviei-me desse objectivo, falando de alguém que recordo, também e com muito carinho…o Sr. Tomé, enfermeiro do hospital do Cubal, para mim e creio que para muita gente, visto como o enfermeiro do Cubal, qual dono do hospital…

Voltando então ao Dr. Largo que vi pela última vez pelo verão, em 76 ou 77 em Vila Real, perto da estação, imaginem, com uma melancia debaixo do braço…Chamei-o de longe, até para tirar dúvidas, pois já não o via há já alguns anos, ele olhou-me, aponta-me dedo e diz:- Do Luso ou do Cubal!E eu lá respondo:- Do Cubal Sr. Doutor, do Cubal!- Ah! O Cubal... gostei muito do Cubal… as feijoadas… o Hotel Rodrigues…O Abreu…Dava naquele ano aulas em Bragança, onde também gostava muito de estar.O Dr. Largo além de um grande professor era, aparentemente uma pessoa muito calma, mas quando lhe chegava a mostarda ao nariz…Lembram-se daquela aula em que sem motivo aparente desata aos murros à secretária e manda uma cadeira até ao fundo da sala, arremessada por cima das nossas cabeças?Foi o evacuar de uma sala, mais rápido que assisti até hoje, num abrir e fechar de olhos o Dr. Largo ficou só, mais a sua fúria...Após aquela saída algo confusa, de imediato entrámos na sala e evitámos que o furioso Doutor mandasse mais cadeiras pelo ar, tarefa nada fácil pois o homem, na sua inexplicável fúria e força, conseguia levantar bem alto a cadeira que tinha em mãos, com dois ou três alunos nela dependurados...O senhor gritava qualquer coisa que de início não entendíamos. Após apurarmos o ouvido conseguimos entender:“Eu quero ser Livre! O filho da “pi” do Salazar, que vá p’ “pi” que o pariu! Quero é ser livre! E o “cabr..” do Director, que é que ele quer? Que vá à M…! Vão todos à M…! Que é que eles querem? Eu quero é ser livre!”Após uns intermináveis minutos, pois estávamos preocupados com o que pudesse acontecer ao professor, e este sem se calar e sem parar de insultar uns e outros, o homem lá acalmou e então, mais sereno, contou-nos o motivo de tamanha revolta. Tinha recebido um convite ou algo do género para leccionar numa Faculdade qualquer da Universidade de Luanda, o que, caso aceitasse, lhe tiraria a possibilidade de, ano sim ano não, conforme a sua vontade, concorrer para o Luso, onde também se comia muito bem, para o Cubal, ou para outra localidade qualquer, ou para onde muito bem lhe apetecesse. Foi a primeira vez que vi alguém tão furioso e só por vislumbrar a hipótese de porem em causa a sua Liberdade…e isto em Angola, entre 1970 e 1972…Que grande professor, isto muito sinceramente, terão perdido os estudantes do Ensino Superior…

Para terminar...Já me esquecia da cena mais hilariante e constrangedora a que terei assistido eu, e a esposa do Dr. Quadrado, farmacêutico, que era professora de música na Escola e também minha professora, amiga e vizinha, e que morava quase em frente à casa onde eu vivia no Cubal. Certo dia, indo do Liceu, ou do edifício em que este funcionou ou funcionava na altura e que também era o Mercado Municipal, ia à minha frente, a poucos metros, a professora de música. Deparámos, de repente, com o Dr. Largo fazendo o seu xixi meio encostado a uma árvore que por ali havia, a já poucos metros do edifício onde tinham aulas os alunos do Curso Geral do Comércio e onde funcionava também, no primeiro andar, a Secretaria da Escola, trabalhando lá a Palmira, filha daquela professora. A senhora ao ver o Doutor naquele preparo, a tão curta distância, atrapalhada, saúda-o, dando-lhe os bons-dias. O nosso querido professor, que como todos sabem, era gago, e bastante, vira-se, continuando a verter águas, e responde:- Mmumu….muu…muito bom dia!…mm…mii…minha senhora!Saudação efectuada, vira-se de novo para a árvore, mais uns segundos de alívio, uma rápida sacudidela… operação concluída. Lá vai o nosso homem, decidido, aliviado, e com um enorme vestígio de pingas mal contidas ou sacudidas, na parte da frente das calças, fazer aquilo de que realmente gostava…leccionar! E, em Liberdade!Agora imaginem a atrapalhação da senhora…E eu?!
Para todos um grande abraço.
Fernando Marta Neves

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