Em 2008, o nosso conterrâneo Fernando Marta Neves brindou o CUBAL Angola Terra Amada com uma das mais saborosas e vivas crónicas que passaram pelo nosso Livro de Visitas. Entre memórias de escola, quedas de bicicleta, escapadinhas ao Colégio Eça para espreitar as miúdas à janela, cuidados do Sr. Tomé no Hospital do Cubal e o inesquecível temperamento do Dr. Largo, Fernando desenha-nos um retrato terno e divertido da juventude no Cubal.
Quinze anos depois, voltamos a partilhar este texto magnífico, agora acompanhado por uma imagem criada especialmente para a ocasião, para que a história não se perca e continue a viajar entre gerações.
A todos os cubalenses – de ontem, de hoje e do coração – deixamos o convite para revisitar estas memórias e também deixar as vossas.
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Do Dr. Largo, quem não se lembra? Foi meu professor de Física, Química e creio que também de Matemática. Era um crânio e um doce de pessoa. Foi pena sermos tão jovens e inconscientes e não aproveitarmos (falo por mim) todo manancial de informação e conhecimento que aquele homem, apesar da sua gaguez, nos transmitia, ultrapassando esta limitação escrevendo tudo o que dizia, no quadro, com uma incrível rapidez. Uma vez por outra quando a aula estava, o que era raro, mais monótona, pedíamos ao Dr. Largo, alegando uma hipotética indisposição, para sair. De imediato consentia dando-nos autorização para irmos ao hospital. Aproveitávamos então esse tempo, para em poucos minutos, nos deslocarmos de bicicleta, normalmente eu e o Campanhã, ao Colégio (Eça), a fim de vermos as “miúdas” que, naquele momento, à janela da sala de aulas, que algum tempo antes também tinha sido minha, desfrutavam do merecido intervalo, nem sempre coincidente com o da Escola, onde já havia um intervalo qualquer com cerca de 20 minutos, a permitir-nos mais uma passagem pelo colégio.
Nem sempre estas viagens corriam pelo melhor, houve uma vez, que ao dar a curva, ali no cruzamento da Singer, virando para o Tipóia, com as miúdas a assistir de camarote da tal janela, a velocidade era tal, que dei um malhanço, que me levou a ter mesmo que passar pelo hospital e, logicamente, de enfrentar o Sr. Tomé a quem dávamos, para justificar as quedas com a consequente ausência de pele em vária partes do corpo, a eterna desculpa do cão, “aquele malfadado cão que se atravessava sempre e na pior altura na nossa frente”, para suavizar a “coisa” com medo de levar algum tratamento de choque (uma generosa dose de tintura ou outra coisa qualquer que mais parecia o inferno em contacto com a pele ou com a parte donde esta se tinha ausentado), acrescido de um raspanete, que era o que mais se adivinhava naquele homem de aspecto “franzino, pequeno e delicado” e que afinal nos tratava como se fossemos seus filhos (só não nos dava, graças a Deus, uns merecidos cascudos).
Nas minha idas ao hospital que não foram muitas, mas não foram tão poucas assim, o senhor Tomé (que Deus tenha em descanso), nosso amigo, fazia questão de, e sempre que lhe era possível, ser ele a tratar-nos (o que na altura não representava lá um grande alívio…), demonstrando dessa forma, o carinho e a amizade que na verdade sentia por nós, e o seu inegável profissionalismo.
Lembrei-me agora daquela vez que fui com o Zé Silveira, ao hospital, para este arrancar um dente… Quem nos aparece para cumprir essa delicada operação? O senhor Tomé que amavelmente me permitiu a entrada para assistir à penosa intervenção, a pedido do Silveira, que me tinha mostrado, enquanto nos dirigíamos para o hospital o indesejado dente, abanando-o com a língua. O Silveira lá se sentou na cadeira de dentista existente no hospital, e mal o Sr. Tomé lhe diz para abrir a boca, ele abre-a realmente mas para começar a chorar e logo de seguida entre dentes, pois de imediato os cerrou.
Aí, eu como amigo do Silveira e custando-me tanto ver todo aquele sofrimento disse ao senhor Tomé que pacientemente aguardava o acesso ao condenado dente. - Ó senhor Tomé o dente já abana… e muito! Ai é! E agarrando com a mão esquerda a cabeça do pobre do Silveira que agora berrava que nem um condenado, possibilitando assim, com o alicate que segurava na direita, a extracção, num abrir e fechar de olhos, do motivo de tanta angústia. Creio que o Zé ficou um pouco zangado comigo, coisa que depressa passou, mal nos apanhámos fora do hospital e do alcance do senhor Tomé.
Mas, estava aqui eu a falar do Dr. Largo e desviei-me desse objectivo, falando de alguém que recordo, também e com muito carinho… o Sr. Tomé, enfermeiro do hospital do Cubal.
Voltando então ao Dr. Largo, que vi pela última vez pelo verão, em 76 ou 77 em Vila Real, perto da estação, imaginem, com uma melancia debaixo do braço… Chamei-o de longe, até para tirar dúvidas, pois já não o via há já alguns anos, ele olhou-me, aponta-me dedo e diz: - Do Luso ou do Cubal! E eu lá respondo: - Do Cubal Sr. Doutor, do Cubal! - Ah! O Cubal... gostei muito do Cubal… as feijoadas… o Hotel Rodrigues… O Abreu… Dava naquele ano aulas em Bragança, onde também gostava muito de estar.
O Dr. Largo além de um grande professor era, aparentemente, uma pessoa muito calma, mas quando lhe chegava a mostarda ao nariz… Lembram-se daquela aula em que sem motivo aparente desata aos murros à secretária e manda uma cadeira até ao fundo da sala, arremessada por cima das nossas cabeças? Foi o evacuar de uma sala, mais rápido que assisti até hoje, num abrir e fechar de olhos o Dr. Largo ficou só, mais a sua fúria...
Após aquela saída algo confusa, de imediato entrámos na sala e evitámos que o furioso Doutor mandasse mais cadeiras pelo ar. O senhor gritava qualquer coisa que de início não entendíamos. Após apurarmos o ouvido conseguimos entender:
“Eu quero ser Livre! O filho da ‘pi’ do Salazar, que vá p’rá ‘pi’ que o pariu! Quero é ser livre! E o ‘cabr..’ do Director, que é que ele quer? Que vá à M…! Vão todos à M…! Que é que eles querem? Eu quero é ser livre!”
Após uns intermináveis minutos, o homem lá acalmou e explicou-nos a razão: tinha sido convidado para leccionar numa Faculdade da Universidade de Luanda, o que o obrigaria a abdicar da liberdade de escolher, ano sim ano não, o destino da sua docência. Era pela Liberdade que ele bradava – alto e bom som – em Angola, nos anos 70. Um professor inesquecível.
Para terminar... Lembro aquela cena hilariante e constrangedora: indo do Liceu, à minha frente seguia a professora de música, quando o Dr. Largo, encostado a uma árvore, aliviava-se despreocupado. A senhora, atrapalhada, cumprimenta-o; ele vira-se, ainda a verter águas, e responde gago: “Mmm… muito bom dia, minha senhora!”. Seguiu depois a caminho da escola, feliz, pingas mal sacudidas e alma livre.
Para todos, um grande abraço.
Fernando Marta Neves
CUBAL Angola Terra Amada • https://cubal-angola.blogspot.com
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